sábado, 24 de setembro de 2011

Ferreira Gullar

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca

Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é o silencio

Que a música que ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza

Que a mulher que eu amo
Seja para sempre amada
Mesmo que distante

Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
Nem repetidas com fervor

Apenas respeitadas
Como a única coisa
Que resta a um homem
Inundado de sentimentos

Porque metade de mim é o que eu ouço
Mas a outra metade é o que eu calo

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma
E na paz que eu mereço

E que essa tensão
Que me corroe por dentro
Seja um dia recompensada

Porque metade de mim é o que eu penso
Mas a outra metade é um vulcão

Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável

Que o espelho reflita
Em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro de ter dado na infância

Porque metade de mim
É a lembrança do que fui
Mas a outra metade eu não sei

Que não seja preciso
Mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito

E que o teu silêncio
Me fale cada vez mais

Por que metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba

E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade
Para fazê-la florescer

Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção

E que a minha loucura
Seja perdoada

Porque metade de mim é amor
E a outra metade também


Ferreira Gullar

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