quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mãe... ainda é cedo...

Dora Lygia Cersósimo Richieri
04 de maio de *1940

29 de novembro de †1970
Darcy Domingues Pereira Assaf
15 de novembro de *1938

28 de setembro de †2011

Fica mais um pouco. Fica aqui comigo. Fica mais tempo na minha vida, nas horas, ao alcance da vista. Fica mais, mesmo que longe, pois a mim basta a certeza de que você caminha sobre a Terra, respira, me ama, me chama por nomes antigos, só nossos, impregnados de cheiros, histórias, paisagens.É cedo, muito cedo. Fica mais. Às vezes tenho a sensação de que só agora começo a te compreender, a te enxergar sem defesas, minhas e suas. Só agora te vejo liberta de todos os adereços, couraças, disfarces, véus. Só agora te olho nos olhos sem medo dos seus abismos, do seu brilho, das suas verdades e dos seus desvarios. Só agora te ouço sem o burburinho dos desgastes cotidianos, sem o eco das palavras mal ditas, sem os silêncios gélidos da solidão acompanhada, sem as bênçãos noturnas e as ladainhas do viver. Te ouço nas pausas, nos sonhos, nas ausências. Te ouço nas lembranças perdidas, escuto seus olhos, te leio as linhas do rosto, das mãos.

É cedo ainda, mãe. Fica mais um sempre.

Só agora te vejo inteira, todas as mulheres que você é e foi. Acolho todas, converso com todas as suas você-mesmas. Te enxergo caleidoscopada, múltipla e te vejo como uma colagem fascinante de muitas faces, fases, falas. Te vejo sem a mesquinhez da minha imaturidade, sem o distanciamento ascético das fronteiras, sem a superficialidade dos pensamentos mágicos. Te vejo frágil e velhinha mas também te vejo menina sonhadora, jovem corajosa, mulher apaixonada, mãe leoa. Te vejo exuberante, linda, culta, divertida, uma estrela que habitava a minha casa.

Te vejo triste, aterrada, atormentada, ferida, desesperada; te vejo rezando, buscando o divino, o transcendente, o esotérico, as respostas para o alma. Te vejo companheira, enfermeira, avó; te vejo amiga, confidente, conselheira. Te vejo colo, luz, rumo. Te vejo eternamente saudosa da casa da sua infância, das gentilezas das avós, da doçura do seu pai, da fortaleza da sua mãe. Posso até ver, sem jamais ter visto, você pequena, caminhando entre roseiras e cambraias bordadas, feliz e segura, certa de que aquele seu mundo duraria para sempre. Ah, minha mãe menina, uma parte imensa de você nunca saiu daqueles jardins. Te vejo e te vendo me vejo também, e aprendo e me encanto.

Impregno meus olhos com os seus traços, meus ouvidos com a sua voz, minha memória com as sua memória, minha consciência com as suas vivências. Te celebro em gestos simples que repito sem perceber, te perpetuo no meu amor pelas palavras e pelos livros, te sento à mesa e sirvo, em pratos de família, receitas ancestrais. Te eternizo nos casos que conto para minhas filhas. Te reconheço no meu rosto, nos meus trejeitos, nas minhas manias, nas flores da minha casa. Penso em você quando as borboletas aparecem no jardim e quando, depois da chuva, a terra quente exala um cheiro de "vent vert". Te procuro nas minhas tempestades. Te trago na alma como um talismã e agradecida penso: não temos pendências.

Fica mais um pouco, mãe, e a gente inventa um tempo, uma minúscula eternidade. Mesmo em compasso de espera, em ritmo de sobressalto, ainda há tempo. Mesmo debruçada sobre o inevitável medo do desconhecido, mesmo sabendo da inexorável finitude de tudo que existe, mesmo antecipando a absurda saudade, mesmo sabendo que tudo valeu a pena, a menina em mim sai em busca daquela outra menininha que caminha nos jardins da sua memória e pede: Fica mais um pouco!

E ela, espantada vai pensar: De onde vem essa que me olha com se me conhecesse, me faz um pedido estranho e a quem eu respondo, sem pestanejar nem saber por que: "Fico, sim!"?

Ainda é cedo, mãe, vamos brincar...
Hilda Lucas